ITINERANCIAS: APONTAMENTOS SOBRE A OBRA DE TCHELLO D ́BARROS
by Claudio Mangifesta
A arte, a poesia, são possíveis formas de apropriação e tratamento do real; e, ao mesmo tempo, formas de responder aos discursos dominantes, atos de resistência contra o caos da vida. Enquanto tomar partido nas questões de linguagem, o poema é tanto um ato ético quanto um fato político. Intenta produzir rupturas no tecido sensível e conceitual das relações que afetam os corpos; intenta fazer ver o que não era facilmente percebido, intenta fazê-lo parecer diferente, com novos olhares; repensar e questionar como se organizam os regimes de configuração do visível e do enunciável.
As experimentações na produção artística atual, são múltiplas e são marcadas por polifonia e diversidade, que muitas vezes escondem uma forte tendência à homogeneidade, produto – entre outras coisas – dos processos de globalização. O campo artístico está em movimento e expansão vertiginosos; mas, de acordo com as leis do mercado, tendem, cada vez mais, a apagar de suas obras qualquer marca de singularidade e subjetivação. O avanço vertiginoso das novas tecnologias impõe uma ilusória democratização dos meios de produção, embora permitam também, paradoxalmente, abrir novos caminhos e experiências que não se eximem do risco de repetições e de novas dormências hipnóticas.
Neste contexto dinâmico e sustentado por uma longa tradição que podemos remontar às próprias origens da humanidade, inscreve-se a obra de Tchello d ́Barros. Um trabalho completo em permanente movimento, rico em deslocamentos inquietos e
profundos. As frequentes mudanças de cidades em sua vida (talvez outras mudanças também) parecem ser uma metáfora para as diferentes mudanças na produção de sua Poesia Visual (cf. os capítulos Translação, Rotação, Precessão e Nutação). Uma obra que dialoga com a poderosa tradição da poesia concreta, do neoconcretismo, do poema processo, do poema semiótico e do experimentalismo visual, que aconteceram e continuam (junto com outras tendências) fecundando-se reciprocamente, a partir do duplo corte paradigmático instituído no alvorecer das vanguardas: sim, somos herdeiros de Mallarmé, mas também de Duchamp.
Dos múltiplos temas cuja insistência se apresenta e atravessa o trabalho de Tchello, gostaria de destacar pelo menos três. Um: o lugar e a preocupação com o tema da Identidade, presente de diferentes maneiras em seu trabalho. Não apenas a identidade como uma nomeação, imagem ou marca fundadora de um sujeito singular, mas também como grupo ou identidade de corpo social. Isso está diretamente ligado ao segundo aspecto que desejo destacar: uma preocupação constante com os problemas sociais, políticos e econômicos pode ser vista em seus poemas, não apenas de seu país, o Brasil, mas também pensada para além desses limites. Seu trabalho não está fechado em qualquer autismo, não se orienta para algum confinamento dogmático ou qualquer enquadramento. Finalmente (e lembre-se que nossa enumeração aquí é necessariamente parcial), uma insistência no tema do tempo, mais precisamente, na existência e nos cruzamentos de diferentes temporalidades, sejam lineares ou cronológicas (antes, agora, depois), retroativas ou de antecipação, eternidades e infinitos – não existe uma forma única de temporalidade nem uma única concepção de tempo – temporalidades com as quais cada pessoa tem que lidar. Essa preocupação com o tempo, observável em muitos de seus poemas, também implica – não poderia ser de outra forma – numa profunda preocupação com questões maiores como a vida e a morte.
Vamos nos deter agora por um momento, na leitura/observação de alguns de seus poemas: um deles nos convoca: “Capetali$mo$”. Na Poesia visual, sabemos, os títulos são muitas vezes uma parte muito importante do poema. É uma forma breve, quase um haikai, três linhas compostas por cada um dos quatro ícones ou símbolos que tentam formar as letras do nome do poema. Começa com a letra “c” uma cobra com a boca voraz aberta bem perto de sua própria cauda. O Oroboro capitalista mordendo a própria cauda? A letra “a”, a primeira letra do alfabeto, corresponde à uma estrela (socialista?). As letras “p” e “l” podem ser a mesma bandeira (negra bandeira anarquista?) em duas posições diferentes, quase como uma notação musical. A letra “e” é um tridente, associado na tradição cristã à figura do diabo. Imediatamente e em contraste, a próxima letra, já na segunda linha, corresponde a uma cruz. No final da linha e em contraponto ao primeiro elemento, uma figura ou ícone, para a letra “i”, é uma bomba caindo de ponta. A terceira e última fileira, começa e termina – é enquadrada em ambos os lados – com o sinal $, o cifrão. O segundo ícone é o do McDonald’s, enquanto o terceiro – diferenciado pelo reforço de sua cor preta – é um ícone do “globo”. O título do poema já é um trocadilho translinguístico e intersígnico: “Cape” = capa; “Capeta” = diabo; “Capetalismo” = Um capitalismo diabólico poderia ser, talvez, o seu significado, se é que tem que ter algum.
Outro poema é formado por uma rede de linhas, pontos, palavras entrelaçadas que constituem sua geografia em uma espécie de mapa de cidades. O mapa não é o território. As artérias principais e secundárias, as ruas centrais ou periféricas se entrelaçam e entrecruzam de acordo com os movimentos vertiginosos de seus caminhos
e trajetórias. Em direção ao centro espacial do poema, há um pequeno marco geográfico quadrado a partir do qual se conectam seis palavras: “geografia”, “perímetro”, “trânsito”, “trajetória”, “vinda” e “deslocamento”. Um pouco acima à esquerda, a marca icônica onde se colocaria o tradicional “Você está aqui”, e um pouco mais acima, à direita, a rosa-dos-ventos que marca os pontos cardeais. Curiosamente, as palavras “chegada” e “partida” estão localizadas longe daquele marco central. No entanto, a partir daqui, tudo é proliferação e disseminação, proliferação de palavras, trajetórias e cruzamentos, porque a cidade como o poema é um território da linguagem – e de seus abismos. Significativamente, o poema chama-se: Você não está aqui.
Alguém realmente habita a própria cidade, sua própria língua? Alguém habita seu próprio corpo? Existe alguém realmente onde o outro espera encontrá-lo? Alguém habita o poema, ainda que seja no ritual de sua leitura, ou mesmo no momento da prática de sua escrita? Como tantos outros, este poema visual abre uma série de questões que, antes de se fechar em uma única abordagem, é necessário acionar as leituras abertas e múltiplas que ele exige. Poesia Visual: entrelaçamentos e tensões entre texto e imagem, entre o icônico e o discursivo, entre o literal e o figurativo, entre dizer e mostrar, entre voz e olhar, entre escrita e imagem, entre logos e imago.
A poesia de Tchello d’Barros, com seu frequente estilo ideogramático, com seu poder de síntese e desejo de clareza, com seu humor corrosivo ou lúdico, expressa a nossa contemporaneidade e oferece-nos sempre, em leituras abertas, a possibilidade de um itinerário sempre outro, sempre novo.
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