Nota sobre o poema empoeiradíssimo “Sertão (Rocha Pós-Punk)”, de Leo Barth
by Wellington Amancio Silva

 

No poema de Leo, “Sertão (Rocha Pós-Punk)” é preciso considerar fortemente o título, que inclui, no horizonte da representação de “Sertão”, um conceito raramente usual, ou nunca utilizado na literatura, quando se refere a “Sertão”. Temos visto uma abordagem crescente no que se refere à urbanidade sertaneja, ao Sertão contemporâneo, mas quase nunca uma referenciação ao universo punk, sobretudo pós-punk (um punk introspectivo, subjetivo e poético).

Bem pensando, o título “Sertão (Rocha Pós-Punk)” convida o leitor a uma leitura não convencional e aberta do Sertão como representação. Se Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, José Lins Rego e Portinari representaram a geografia do sertão com secura, afastada, rude, bruta, inóspita, o sertanejo, desde “Os Sertões” fora representado como nada alfabetizado e simplificado de espírito. No poema de Leo temos de início o mesmo Sertão: “Carcaças de bois/Estradas de barro ferventes/Doem vistas à cachaça de pau forte”. Aqui o autor repete-o ao passado, pala logo em seguida dizer: “Cheiro de couro não sintético”. A voz implícita ao dizer “[…] não sintético”, demonstra conhecer o “sintético” no presente, e que ele ainda não faz parte daquele Sertão velho da primeira estrofe.  Mas o autor utiliza-se da expressão “não sintético”, para a um só tempo associá-la a frase seguinte “Surrupio de alma não curtida” e a firmar que a velha alma curtida já não é mais. A alma não curtida, para o bem ou para o mau “surrupia” tudo ao seu redor, tal ao espírito da modernidade acirrada sertaneja, presente nos gestos do controverso lampião, que surrupiava e era tido como do bem, e horas como do mal, porque surrupiar é tomar para si um butim, num lugar onde tudo falta — eis a contradição do tirar aquilo do ponto onde se faz falta para dar, talvez, aos seres exauridos por não terem nada (se se quer pensar Lampião da perspectiva de um Robin Hood). Penso ainda que o “surrupiar é a essência dos sentidos de “Sertão”.

É como se o autor estivesse insinuando um neo-cangaço poético, quando nas outras estrofes, deixa de lado a questão geografia (Sertão) para desenhar o indivídio sertanejo: “Enxertou fúria ao tempo/O homem feito de fumaça fogo/ Bronze argila/Imolando o próprio rosto em punhal/Esburacou sol com balas/Faturando o céu”. Aqui mais uma vez, lembramos de Lampião, mas certamente o poeta não aponta a Lampião, ou ao cangaço — quem sabe ao espírito de inquietude, revolta e não conformismo. Estes seis versos constituem precisamente a figura do Homem sertanejo revoltado, se assim Camus o conhecesse, como indivíduo lançado ao destino impreciso deste Sertão-absurdo.

Quando se diz “Imolando o próprio rosto em punhal/Esburacou sol com balas/Faturando o céu”, o poeta alude à forte peleja do sujeito sertanejo em meio ao seu inferno, e que remete direta e precisamente à trajetória de Augusto Matraca, do conto revolucionário e essencial “A hora e a Vez de Augusto matraca” (Sagarana, de Guimarães Rosa). Ora, Augusto Matraca é o homem revoltado de Camus pelos olhos de Guimarães Rosa, é o Sertão é todo Absurdo.

Aquele aspecto nihilista camusiano se repete ou comprova sua universalidade nos versos seguintes: Não existem pontas de cordas/A serem atadas/Destino é puro xaxado repetição/Balanço de rabo fedido/Do rabugento caçador cão. Isto se dá em três etapas: a) a descoberta da impossível conciliação entre os homens e entre os homens e sua geografia seca (Não existem pontas de cordas/A serem atadas); b) nihilismo em relação ao Destino e alusão precisa ao conceito de “retorno do mesmo” de Nietzsche (Destino é puro xaxado repetição); c) E ninguém escapa da sua sina, que é agir para o bem ou para o mal, num lugar de crise perene, o sertão, e no final das contas não restar espaços para heróis, talvez, que sabe, anti-herói (Balanço de rabo fedido/Do rabugento caçador cão).

Depois desta catarse, da analítica deste sujeito sertanejo revoltado no cerne do absurdo sertanejo, o autor retorna à Geografia, agora maculada por sua nova noção de indivíduo sertanejo nietzscheano-camusiano. Agora o sertão ainda seco e sempre seco, como sempre, tem paisagem maculada por um parimento surrealista e violento: Seco/Esbugalhando nuvens em chamas/Balbuciou sortes juízo vingador/Sem chapéu terço camisa/Abstraindo ódio à lembrança mortuária do fruto roxo da mulher amada. Quanto coloca juízo na paisagem diz para mim “determinismo desse homem revoltado” (Balbuciou sortes juízo vingador) para o bem ou para o mal, visto a naturalização da ambiguidade entre bem e mal no Sertão. Da ausência de alguma redenção ou ajuda metafísica (Sem chapéu terço camisa) o homem revoltado sertanejo vê a morte e tira dela seu ódio, que não sendo mais destilado pela dialética “ponta-de-faca-no-bucho-alheio”, vira escrita revoltada e louca, e o ódio é transformado em palavra.

E o autor em seu pertencimento (“Cá”) adverte aos visitantes: Cá não é preciso andar ligeiro/No pesar do fardo/Violentamente voar/À escuridão do meio-dia. Que gravidade louca é esta que somente vinga por aqui, que no peso maior do mundo sobre as nossas coisas nos alça para o alto de um céu branco e vazio?

A vocês que se achegam ao sertão, em seus tênis macios, saibam que “não é preciso andar ligeiro/porque é No pesar do fardo que se dará o Violentamente voar. Não se apresem por aqui, visto que a escuridão é mesmo ao meio-dia.